Sociologia e política, A Dádiva
Dentre todos os escritos de Mauss, o
"Ensaio sobre a dádiva" é sem dúvida o mais conhecido, o mais
"famoso": é a sua "obra central", afirma Maurice Leenhardt
em 1950 e, por que não, sua "obra prima", como declara Stephen Lukes
vinte anos mais tarde. O "Ensaio" foi publicado em 1925, no primeiro
tomo da segunda série da Année Sociologique que Mauss
conseguiu "relançar" com a colaboração de uma equipe de
"trabalhadores desinteressados" composta por Célestin Bouglé, Henri
Hubert, Paul Fauconnet e François Simiand.
No mesmo tomo Mauss publica um longo
texto "In memoriam. Obra inédita de Durkheim e seus colaboradores":
"Estamos reduzidos a uns poucos, escreve Mauss. (...) Tratemos de fazer
alguma coisa que honre a Inetnória de todos eles, algo que não seja muito indigno
do que inaugurou nosso Mestre". Mauss retoma então a
"tocha". Com a idade de 53 anos, é então diretor da cadeira de
"Religiões dos povos não civilizados" na Ecole Pratique des Hautes
Etudes; participa também com seus amigos Lucien Lévi-Bruhl e Paul Rivet da
implantação do novo Instituto de Etnologia de Paris, que abrirá suas portas no
início de 1926.
O "Ensaio sobre a dádiva" é
tão importante e central na obra de Mauss que constitui 1) um ponto de encontro
entre suas preocupações científicas e políticas e 2) um prolongamento-renovação
da teoria durkheimiana da coesão social, da relação indivíduo-sociedade. A
publicação desse ensaio aconteceu, é preciso lembrar, no contexto dos anos do
pós-Primeira Guerra - questões de ordem e de paz, etc. - e em um momento em que
Mauss prossegue a redação de seu ensaio sobre A Nação.
Em primeiro lugar, o contexto
intelectual. No imediato pós-guerra, uma tragédia vitima Durkheim, seu filho
André e vários colaboradores da Année Sociologique (Robert
Hertz, Antoine Bianconi, Jean Reynier, R. Gelly). Mauss vê cair sobre si o peso
enorme da publicação de uma obra considerável e inédita. O herdeiro tem "o
dever para com a memória de Durkheim" de prosseguir sua obra. Mesma
obrigação em relação a Hubert, que morre em 1927.
O "Ensaio sobre a dádiva" faz
parte de uma série de pesquisas que Mauss encetou pouco antes da guerra sobre
as formas arcaicas de contrato e, em particular, sobre o podatch. Há
uma referência ao ensaio na resenha escrita por Mauss para o Année
Sociologique (1913) sobre o livro The Melanesians of British
New Guinea, de autoria de seu amigo inglês C. G. Seligman. No imediato
pós-guerra, Mauss consagra a esse tema várias palestras para os membros do
Instituto de Antropologia: "A extensão do potlatch na
Melanésia", "A obrigação de dar presentes". O texto que ele
apresenta no Les Mélanges dedicado a Charles Andler tem por
título "Gift-gift": em diversas línguas germânicas, o presente é
também um veneno. Diante disso, nada de surpreendente no fato de que todo presente
provoque naquele que recebe ao mesmo tempo agrado e desagrado. Enfim, nos
cursos que ministra na Ecole Pratique em 1923-24, Mauss discute os trabalhos de
Malinowski e, estudando a instituição do potlatch, apresenta
os primeiros resultados de sua pesquisa sobre as noções de dádiva, de
compensação e de penhor. Um outro interesse de Mauss - e que era partilhado por
Robert Hertz - é o estudo dos fatos de sugestão coletiva, do que alguns chamam
então "desrazão coletiva", por exemplo a crença na eficácia das
palavras, como podemos ver na sua palestra para os membros da Sociedade de
Psicologia em 1926 sobre o "Efeito físico no indivíduo da idéia de morte
sugerida pela coletividade".
O contexto político. Durante a guerra,
Mauss se alistou como voluntário e foi designado intérprete junto às unidades
combatentes inglesas e australianas. Ali permanece, "sacrifica-se",
podemos dizer, durante mais de três anos. Com o fim da guerra, é o difícil
retorno às atividades profissionais - grave doença em 1920-21; é também a
retomada das atividades políticas em um contexto difícil (dissidência de Tours
e criação do PCF, numerosas divisões internas). O engajamento político de Mauss
é mais intenso que nunca: publicação de artigos sobre o movimento cooperativo e
criação da Revue des Etudes Coopératives, membro do conselho
de administração do Populaire, dirigido por Léon Blum, onde
publica uma longa série de artigos sobre as "Mudanças", colaboração
no hebdomadário La Vie Socialiste, redação de suas
"Observações sobre a violência", etc...
Mauss, o "velho militante",
tenta realizar a junção entre preocupações intelectuais e seus compromissos
políticos, como vemos em seus dois projetos de obra: a primeira sobre o
bolchevismo e a segunda sobre a nação. São trabalhos onde "se mesclam e
exaltam o ardor do erudito e o do homem político".
O "Ensaio sobre a dádiva" é
manifestamente a obra de um sábio: sólida erudição em etnologia, domínio de
várias línguas, estudo comparativo minucioso. Mas, como veremos, o "ardor
do homem político" não está totalmente ausente.
O que diz Mauss nesse Ensaio? Ele
analisa a dádiva, a reciprocidade e a troca nas "sociedades
arcaicas", principalmente na Melanésia e no noroeste americano; estabelece
também uma comparação com "alguns traços dos direitos indo-europeus"
(direito romano, hindu clássico e germânico). Sua atenção se volta para um
conjunto de prestações aparentemente livres e gratuitas, mas que são, como ele
demonstra, obrigatórias e interessadas: os presentes.
Procurando encontrar uma explicação,
Mauss se refere à noção de hau, do espírito da coisa. Ele
também utilizou em seus trabalhos sobre a magia uma outra noção indígena, a
de mana. Haveria uma força das coisas que obriga a dar
presentes, pois "apresentar alguma coisa a alguém é apresentar alguma coisa
de si".
O "Ensaio" de Mauss é bem
recebido no momento de sua publicação: uma "dissertação muito
importante", um "artigo admirável" (Malinowski), um "estudo
muito interessante" (Boas). Mas desde 1929, emPrimitive Economics of
the New Zealand Maori, R. Firth contesta a utilização de Mauss da
noção de hau. É o início de uma longa controvérsia... Mauss ter-se-ia deixado
enganar pelos indígenas? Não exatamente, concluirá um Lévi-Strauss pouco
satisfeito com tal explicação: é perigoso, pensa ele, "reduzir a realidade
social à concepção que o homem, mesmo selvagem, tem dela".
* Retirado
de MARCEL MAUSS OU A DÁDIVA DE SI Marcel Fournier